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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Naufrágios & Comentários, o relato de Alvar Nuñez Cabeza de Vaca













Um aventureiro que combateu o genocídio dos índios






Precioso como fonte primária, este relato conta as aventuras e desventuras deste que foi um dos mais intrépidos e incomuns conquistadores da história colonial da América. Ao naufragar na Flórida em 1527, ele caminhou, descalço e nu, dezoito mil quilômetros até o México, onde chegou em 1537.
Em 1541, nomeado governador do Rio da Prata, Cabeza de Vaca aportou na ilha de Santa Catarina – onde viveu alguns meses – e dali partiu, também a pé, rumo a Assunção, Paraguai, onde chegou em 1542. Durante toda sua vida aventureira – na Flórida, no Texas, no México, no Brasil e no Paraguai –, lutou em favor dos povos indígenas. E pagou caro por isso: foi preso e enviado para o exílio. Em Naufrágios e comentários, Cabeza de Vaca narra suas fantásticas aventuras e desventuras bem como suas infrutíferas tentativas de impedir o genocídio perpetrado pelos brancos na América.





Jornada em busca da iluminação

Henry Miller­



Desde minha jornada através do Pesadelo Refri­­ge­­ra­do [1],tenho permanecido obcecado pela idéia de que a maior desgraça já imposta ao homem branco aconteceu neste continente. Mesmo quando criança, ficava impres­sionado com a história de que os índios haviam recebi­do os primeiros brancos como deuses. Mais tarde, já adulto, e particularmente como americano, não havia nada relacionado à desumani­dade do homem com seu semelhante que me entristecesse mais do que o vergo­nhoso registro de nossas relações com os índios. Passei então a considerar essa fase da nossa história de outra maneira, de uma maneira ainda mais triste. Vi a recusa do homem branco em representar o papel que era es­pe­­rado dele como uma oportunidade perdida – uma oportunidade de fato, e que talvez jamais lhe seja dada novamente.
Então surgiu a história de Cabeza de Vaca, dos mi­lagres que realizou, não apenas para si mesmo como pa­ra outros. Foi o primeiro momento glorioso que encon­trei na legenda sangrenta criada pelos conquistadores. Devo acrescentar que, na verdade, trata-se de um perío­do glorioso para a história do homem como um todo porque De Vaca, num determi­nado momento, deixa de ser um personagem histórico e se torna um símbolo. É esta visão da jornada que me faz preferir seu relato ao de outros. Qualquer análise mais profunda deste li­vro eleva seu drama a um plano que pode ser compara­do a outros eventos espirituais na cadeia dos esforços incessantes do homem em busca da autolibertação.
Para mim, a importância deste registro histórico não está no fato de que De Vaca e seus homens foram os primeiros europeus a atravessar o continente america­no, que abriram caminhos que outros exploradores se­guiram, ou que suas peregrinações provaram a existên­cia de uma massa de terra de proporções continentais ao norte da Nova Espanha, ou mesmo porque, com seus inflamados protestos, De Vaca fez terminar – ain­da que momentanea­mente – as bárbaras capturas de escravos naquela região; mas sim porque, em meio a suas provações, depois de anos de infrutíferas e amar­gas peregrina­ções, um homem que já havia sido um guerreiro e um conquis­ta­dor, fosse capaz de dizer: “En­sinarei o mundo a conquistar pela bondade, não pela matança”. Porque, no curso de suas atribulações e triunfos, Cabeza de Vaca veio finalmente a compreender que “um homem é tanto quanto ele é perante Deus, e não mais”, para usar as palavras de São Francisco. A jorna­da é o simples e comovente relato de um homem destituí­do de tudo e obrigado a agir em cada momento de sua vida sob a visão de Deus.
Tão terrível quanto estar separado de seus compa­nheiros, permanecer nu e faminto durante dias e sema­nas, às vezes meses sem fim, tão terrível e humilhante quanto ser feito escravo pelo povo que tinham vindo conquistar, o pior mesmo “era abandonar pouco a pou­co os pensamentos que vestem a alma de um europeu, e mais do que tudo a idéia de que o homem adquire força através do punhal e da adaga...” Quão eloqüentes são suas palavras quando, perto do final da jorna­da, ele encontra os outros membros da expedição, que tinham devastado a terra e escravizado os índios. “Ao en­ca­rar estes saquea­dores”, escreve, “fui compelido a en­carar o cavaleiro espanhol que eu mesmo tinha sido oi­to anos atrás.”
[2]
Este tema retorna outra vez: o homem que eu era contra o homem que sou agora. A conversão não foi ape­nas profunda e completa, mas viva em sua consciência, a um grau quase intolerável de se ler.
Há uma tendência por parte dos comentaristas de não acreditarem nos prováveis milagres operados por Álvar Núñez Cabeza de Vaca. Incapazes de negar a ve­racidade desses fatos, buscam explicá-los insinuando que, conscientemente ou não, os espanhóis apenas imitaram os xamãs indígenas. Louvam a modéstia dos espanhóis, que atribuíram seu sucesso ao auxílio direto do poder divino, mas ao mesmo tempo tentam desculpar os exa­geros e equívocos nascidos de uma imaginação inflama­da. Por essa atitude, parece-me que fogem por completo da questão dos milagres. Afinal, se De Vaca e seus homens são considerados suspeitos, que dizer então dos poderes efetivos dos xamãs?
O que me parece evidente é que os europeus civili­zados de quatro séculos atrás já haviam perdido algo que os índios ainda possuíam – e, em determinadas regiões, pos­suem ainda. Nenhum de nossos pajés moder­nos, apesar da “superioridade” de seu conhecimento e equipamento, é capaz de realizar curas milagrosas. Pa­rece ter sido esquecido que os espanhóis adquiriram seus poderes para curar apenas quando suas vidas es­tavam amea­çadas. Se tivessem sido hábeis e perspica­zes obser­vadores das práticas dos xamãs, teriam explo­rado esses poderes muito antes de atingirem tal extre­mo. Nada pode ser explicado ao, simplesmente, atribuir-­se seu sucesso par­cial ou provável a “um novo procedi­mento, desconhecido e incrível”. Estamos interessados é em saber como e por que esses métodos funcionavam e, se funcionavam, por que agora já não funcionam?
Acredito também, e por isso nunca cessarei de fa­lar deste pequeno livro, que a experiência desse espanhol solitário e deserdado no sertão da América anula toda a experiência democrática dos tempos modernos. Creio que, se vivesse hoje e lhe mostrassem as maravi­lhas e horrores do nosso tempo, ele voltaria instanta­neamente ao modo de vida simples e eficaz de quatro séculos atrás. Acredito que São Francisco faria o mes­mo, assim como Jesus, Buda e todos aqueles que viram a luz. Não consigo acreditar em nenhum momento que teriam alguma coisa a aprender com nosso modo de vida.
As propostas deste acordo de boca mundial eu co­nheço, mas suas atitudes falam distintamente. De Vaca aprendeu que se cura pela fé, que se conquista pela bondade. “É curioso”, escreve a Sua Majestade, “quan­do não se tem ninguém ou nada em que se confiar a não ser em si mesmo.” Sim, é realmente curioso. “Para se entender o que significa não ter nada, é preciso não ter nada.” Verdade. E, ainda assim, apenas um punha­do de homens em toda a história se atreveram a esta experiência.
Os homens que governam o mundo prometem isto e aquilo, liberdade, honra, segurança e – trabalho. Suas promessas são vazias e têm se provado vazias sempre. Mas os homens vazios gostam de promessas vazias. O homem que aconselha: “Olhe para você mesmo, o po­der está dentro de você!” é visto como um sonhador e um louco. Mas estes são os homens que fizeram mila­gres, que mudaram o mundo. Nenhum deles falou de posse, segurança, honra ou de liberdade. Falaram de Deus e de sua presença em todos os lugares, mesmo na alma de um descrente. Falaram dos ditames do cora­ção, de dedicação e devoção, em servir o próximo, de caridade, de amor, de tolerância e indulgência, de hu­mildade, de perdão. Cabeza de Vaca foi um dos poucos homens deste grande hemisfério que agiu sob estes prin­cípios de fé. A história simples de sua iluminação, sua irrevogável mudança de coração, apaga os rastros san­grentos de Cortez e Pizarro e de todos os conquistadores da terra desde tempos imemoriais. Nos leva a acreditar, desde o fundo de nossos corações, que um homem pode parar em seu caminho e, ao encarar a verdade, exempli­ficá-la através da ação. Nos leva a acreditar ainda mais que, na verdade, nada menos do que isto jamais satisfará o homem. E acredito ser este o significado da jor­nada que estamos todos fazendo.


[1] Depois de dez anos como um expatriado na Europa, Henry Miller retornou aos Estados Unidos em 1939. Decidiu então viajar de carro pelo país. O relato cáustico e inconformado dessa viagem foi publicado em 1945, sob o título de Air-Con­ditioned Nightmare, que é a maneira como Miller define seu país. (N.E.)
[2] Esta e todas as demais citações que Miller faz das palavras de Cabeza de Vaca não são textuais. Foram tiradas de uma novelização bastante precisa da trágica viagem do conquistador, feita em 1939 por Haniel Long e publicada sob o título de The Marvelous Adventure of Cabeza de Vaca (Frontier Press, 1941). Originalmente, o prefácio de Miller foi escrito pa­ra o livro de Long. (N.E.)


Publicado por: http://www.lpm-editores.com.br/ em 14/12/2009.

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